Óu Galicia, Galicia boi de palla
Canta lástima tèn de ti o Gaiteiro!
O aguillon que che menten è de aceiro
E con el muita forza te asoballa.
No lombo teu zorrega, bate e malla
Fasta o máis monicreque ferrancheiro,
E calesquer podenco forasteiro
Te vafa, de vergonza sin migalla!
Agarima alleeira eses ingratos
Ou vívoras que postas ò teu peito
Co ferrete che rompen mil buratos!
Si o sangre teu refugas do teu leito,
Malas novas, madrasta de insensatos,
Dos fillos teus ò amor non tès dereito.
J.M. Pintos, A Galicia, 1962
As duas cousas mais surpreendentes daquela manhã foram que o Senhor Belpelho decidira tomar um banho de corpo e que de seguido acháramos que no algibe não ficavam muitas reservas. A seguir tudo foram carreiras e vozes pelo castelo. Depois vieram mensageiros.
Reunidos os principais na grande mesa passaram a considerar as causas da falta de auga, tão inoportunas neste momento da guerra. Chover não chovia, claro, mas era certo que o inimigo, canalha e cruel, tomara pela vez primeira a audaz disposição de cortar o abastecimento, cegando, sem dúvida, mais arriba o regato monteiro que vinha até o pé da Torre e se filtrava na rocha base.
Cousa inadmissível este agir do inimigo. E o pior foi quando a pouco do meio-dia chegaram mensageiros dos outros senhores da Beira informando de cousas tamanhas e faronejas. O inimigo já não comprava o que se produzia nas terras dos castelos, não permitia mesmo a passagem de mercadorias pelos caminhos e ainda para além de sitiar, empregava bombardas pedreiras a discrição, sem cuidar de alvejar nas bestas, nas fazendas, nem ainda nos nenos.
Desde os tempos de Fernando da Cunha e daquele Mudarra seu segundo, com os seus centos de esbirros, fora a alma, reinantes o Fernando VII e Isabel a II não se viram tais práticas assanhadas, tantas gentes de armas de fora e tais traições nos fidalgos do país. Mesmo se dizia que já passara a cutelo e forca vários rebeldes, e entre eles tomara preso o mesmíssimo Marechal Solis que levaram acorrentado para justiçar em Mondonhedo ou Carral, que não se sabia certo, com os seus.
A tal extremo chegaram as cousas, que alguns senhores – dos de velho no bando trastamarista – torciam os renartes olhos ante tais práticas de campo queimado e arrasadeira de gentes; que seica faziam perigar alguns dos seus negócios e disque até tocavam contra alguns dos seus “afilhados”.
E ainda contava o louro pajem Rojin Rojal que não havia muito se reuniram alguns dos principais em Compostela para tratar do caso, sem acordarem, como adoito, muita cousa, pois cada um ao céltico sentir andava afeito a mirar apenas pela sua paróquia.
E que lá, como agora cá, saíra a rolda de velhos contos: que se o Reino era eterno, que se estas cousas eram boas que faziam acordar do sono em que se está debruçado, que a ver se os das Irmandades iam ter razão, até se não era já hora de se passar a Portugal. Porém muitos ainda diziam que não acabavam de ver que se acontecia nem que convinha ir fazendo, que aguardariam mais consultas.
Também é certo que alguns dentre os senhores bem se lhes via que o que queriam era ver como serem do inimigo, sem deixar de ser dos nossos, é claro. Igual que outros do inimigo queriam, sem que se lhes notasse muito, continuar com os seus negócios connosco.
Finalmente uns decidiram mandar arautes para ler ao inimigo umas fortes palavras de escarnho e outros decidiram que o melhor era convocá-lo no campo neutral ante os Reis e segundo ditavam as leis maiores a reunião para exigir-lhe só paulinha papal que volvesse ao sentidinho e a consensuar a guerra.
Entanto outros, os mais afoutos, berravam qual Montenegros ou Churruchaos, que era culpa nossa por sermos uns acanhados e desleixados, que o inimigo era o inimigo, que caralho! E como corresponde fazia de inimigo.
E o certo que o inimigo faz bem o seu trabalho. Para mim - e sendo um simples escudeiro sem muito mundo - diria que somos nós que em vez de nos reunir e o combater como tal, perdemos o tempo a lembrar-lhe que segundo as leis da cavalaria devem desmontar para bater no caído em vez de lhe passarem com toda a cavalada a galope por cima.
Mudam os tempos. E se é certo o que contam, lá da FAES de Madrid, reunidos os inquisidores, mandam e vem este brutalhão, de Feijó o Moço, que não respeita as normas da guerra e emprega felonamente decretos, artilharia, besteiros e todas essas técnicas rejeitáveis de extermínio.
Afeitos como estávamos a este lento assédio civilizado e aos doces subornos e chegara este, um simples monicreque ferrancheiro, passando soberbo o Lima, de Governador e justiça maior ao Reino interferir em tudo e exigir lealdade incondicional e obediência aos Reis, língua e costumes de Castela.
Não há direito. Que crueldade! O inimigo quer nos exterminar em vez de nos sitiar amavelmente entanto comerciávamos e íamos comodamente esmorecendo. E já não nos convida nem a auga, não sendo que lhe juremos vassalagem.
Vassalagem? Ai, Galiza, boi de palha...
(A Crunha, 1970) Da Academia Galega da Língua portuguesa, Doutor em Filologia Hispânica (secção de Galego Português), especialista em história do impresso galego na etapa contemporânea. Tem focado os seus contributos arredor do movimento das Irmandades da Fala, a figura de Angel Casal e o mundo do livro galego. Trabalha como bibliotecário na Universidade de Valladolid.
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