Há gente que sonha poder voar. Para mim voar não é doado. Requer concentração constante, mesmo nos sonhos. Nos meus voos oníricos por vezes custa-me alcançar a altura suficiente, por cima de cabos e telhados. Outras é mais fácil. Ainda tenho problemas com as manobras mais singelas, que requerem um grande esforço mental. Os cabos são um problema. Se calhar é por falta de horas de voo. Não lembro ter voado na noite passada. Mas lembro ter acordado pensando em Ramoncín e Stephen Hawking. Então lembrei outras vezes que sonhei que voava (ou voei que sonhava?) e achei alegórico. Eu li pouco Freud e nada Jung, daí que não saiba muito bem o que pensar de tudo isto.
Hoje apanhei o teleférico. O teleférico é útil e até formoso. Mas não é o mesmo. O teleférico não é voar. A gente vai presa numa estrutura metálica que por sua vez pendura dum cabo. Não pode ir onde quer. Não é livre. Nos sonhos a manobrabilidade resulta complexa, porém, a viagem não fica sujeita a uma trajectória linear prefixada.
Eu fui neno numa altura na que o conhecimento e a cultura de massas viajavam frequentemente em teleférico, pois iam decote ligados a um suporte material. O controlo do suporte era o controlo da difusão desse conhecimento e dessa cultura. Os pontos de origem e destino vinham prefigurados e o viageiro era apenas espectador passivo do trânsito. É a minha uma geração de consumidores passivos, pré-configurados. Hoje, o conhecimento e a cultura, libertados dos seus corpos mortais como nos melhores tempos da tradição oral, navegam sem cancelas através de oceanos binários. Não se sabe de onde vêm nem para onde vão.
Em 2005, um internauta anónimo pendurou um vídeo na Internet no que um raparigo coreano mostrava o seu virtuosismos com a guitarra eléctrica. A peça escolhida era o Canon Rock, uma versão do popular Cânon de Pachelbel adaptada para guitarra eléctrica por um outro rapaz taiwanês pouco tempo antes. A interpretação foi visionada mais de 60 milhões de vezes e logo surgiu uma legião de imitadores, um dos quais, um francês de 15 anos, chegaria a alcançar ele próprio fama de seu depois das suas re-interpretações pessoais ser visionadas também por vários milhões de pessoas. Um sucesso que o autor de "litros de alcohol corren por mis venas, mujer" não poderia nem imaginar nos seus tempos de máximo apogeu. Gosto de pensar que está a nascer uma nova geração na que todos e cada um poderão, não apenas devir criadores activos de cultura, mas ter acesso a uma audiência planetária sem custo nenhum.
Quando criancinhas fazíamos colagens com santos que recortávamos das revistas. Estaríamos a violar, sem o suspeitar, o direito à imagem de Madonna? Os meninos de hoje fazem colagens audiovisuais que seriam a inveja de muitos criadores de vídeos musicais dos 80. As nossas colagens eram inspeccionadas polo mestre de turno e admiradas polos nossos familiares e companheiros de escola. As colagens de hoje são visualizadas por milhares, ou milhões, de pessoas do mundo todo através da Internet. Aparentemente, esta diferencia de escala pode fazer com que os pais destes nossos "criadores" em miniatura sejamos considerados delinquentes. Quando criancinhas gravávamos música de Los 40 Principales, mais adiante evoluiríamos cara RNE3, em cassetes reutilizadas centos de vezes que compartiamos com os nossos amigos. Daquela compartir era bom. Hoje, será questão de escala, compartir de forma altruísta aquilo que uma pessoa ama vem sendo também uma actividade delituosa.
Então, um dia vai e sai o Ramoncín na TV a tentar convencer-nos de que somos todos uns flibusteiros. Outro dia vai o Hawking e informa-nos de que a evolução da espécie humana já não radica tanto na transmissão da informação genética quanto na transmissão do conhecimento. Eu acho maravilhoso um mundo no que podem coexistir dous conceitos tão profundamente antitéticos como Hawking e Ramoncín, Ramoncín e Hawking. Estaremos a entrar numa nova era na evolução da espécie como vaticina o britânico ou numa nova fase na evolução do crime organizado como afirma o espanhol? Será uma sofisticada forma de bandidismo virtual ou será que a indústria do entretimento nega-se a evoluir com os tempos? Fico com o Cânon em Ré Maior.
Edelmiro Moman Noval nasce em Ferrol no ano da crise do petróleo. Sobrevivente do desmantelamento naval, doutora-se em química para realizar a seguir um longo périplo que o conduzirá através de diversos centros de investigação internacionais. À sua condição semi-nómada soma-se logo a de arraiano, já que, residente no Luxemburgo, atravessa quotidianamente a fronteira para trabalhar da Universidade das Terras do Saar, Pontes do Saar, Alemanha. »