Decorria uma gélida jeira do Janeiro de 1949 na aldeia de Trás-Murães, paróquia da Capelada, na Galiza mais Atlântica, quando nela nascera José Ferreira.
Nascera na corte da casa da Cunqueira e, daí, passara ao zuleiro, como sempre se fizera não só na sua casa, senão em toda a contorna conhecida. Mais tarde, aos dezaoito anos, José seria rebaptizado como O Moucho da Cunqueira por um seu compadre na noite grande das festas do Santo André, milagreiro patrão paroquial. O alcume ganhara-o polo seu particular jeito, algum desinformado diria que compulsivo, de enfitar as moças da vizinha paróquia da Gesteira. Ai, Maria da Breia! -suspirava secretamente o Moucho-. Aqueles olhares passionais remataram por dar pé à que seria recordada como maior liorta da história das festas do Santo André, que enfrontara por um lado o Moucho e os seus companheiros de canfurnada e, polo outro, os moços da Gesteira comandados polo irmão mesmo da Maria. A bulha fora tal que tivera que intervir a Guardia Civil e tanto José como o Manuel da Breia, irmão da Maria, acabaram por ter de passar noite nas dependências dos de verde. Não sabendo-se mui bem por que, talvez polo medo que ali passaram, o José e o Manuel abandonaram o quartel sendo bons amigos e por fim ao Moucho se lhe abriram as portas para conhecer a Maria, com quem, um ano mais tarde, acabaria casando.
Passou o tempo e as cousas na aldeia não acabavam de ir bem, até que José Ferreira, o Moucho da Cunqueira, propôs abertamente à sua dona uma ideia que levava já tempo a dar voltas na cabeça da parelha: emigrarem à Crunha. E lá foram, com a promessa de, chegada a hora, desfrutar da vida vindoura deitados no campo-santo sito ao carão da igreja de Santo André da Capelada.
Nem a casa da Cunqueira nem a da Breia eram casas fortes e o matrimónio tivera que chegar à Crunha com os poucos quartos que tiraram de malvender algumas leiras nem muito grandes nem muito fecundas. Deu-lhes, isso sim, para uma pequena vivenda no bairro de Monte-Alto, compartindo portal com um outro matrimónio chegado da aldeia; conhecidos da família da Maria. Ao pouco tempo, o José encontrou choio como peão da construção e, pouco mais tarde, Maria começou a trabalhar realizando as tarefas domésticas na casa do Sr. Antonio Ontúñez, um conhecido construtor, bom amigo do patrão de José. Maria esforçava-se por trabalhar bem, pois sentia-se em déveda com o empregador do seu homem, e tão bem trabalhava que chegou a sentir-se mui querida pola família Ontúñez, encantada não só com as suas boas maneiras na cozinha e com a vassoira e os farrapos, mas também com o apreço e bom trato que Maria demonstrava com os dous cativos da casa: Álvaro, de oito anos, e Azucena, de nove.
O incidente acontecera um domingo à manhã. Se Maria pudesse possuir um relógio que marcasse os segundos, como o que amiúde luzia Dom Antonio, poderia relembrar o intre exato do acontecido ainda hoje. Bom, na realidade, já lembrava esse intre bem amiúde; ao princípio, durante os primeiros anos, vinha-lhe todos os dias à memória. Com o andar do tempo, a lembrança tinha uma frequência mais bem semanal ou, quiçá, aparecia a cada três ou quatro dias; tudo dependia do nível de stress que afetara a Maria em cada época da sua vida.
Aquela manhã de domingo havia visita na casa dos Ontúñez. Esperavam a chegada do Sr. Esteban Mellado, prestigioso arquiteto, que viria acompanhado da sua mulher e mais dos três filhos do casal. Maria fora à porta para recebê-los e, nada mais abri-la, os três cativos entrarom em debandada em busca dos pequenos Ontúñez, Alvarito e Azucena, que aguardavam impacientes no hall, perfeitamente vestidos ao jeito de miniaturas de príncipe e princesa, respetivamente. As duas famílias foram para o espaçoso salão da vivenda e sentaram nos cómodos sofás estofados; detrás ia Maria, leda por saber-se guapa e muito elegante com aquele uniforme negro e branco, acompanhando gente de tanta classe. Uma vez que as duas famílias sentaram, o Sr. Antonio encomendou à Maria que trouxesse o seu melhor whiskey junto com um par de copos. Assim pois, mentres Maria, obediente, abandonava a sala, escutou como as duas mulheres começavam a falar duma nova joalharia que abrira nesses dias perto dos Cantões. De caminho à licoreira, Maria não podia deixar de pensar em como seria vestir algumas das joias que centravam a conversa das duas mulheres. Pegou a bandeja de prata, onde foi pousando devagar o whiskey e os dous copos. As joias a ocuparem a sua mente. Ergueu-se para se dirigir novamente ao salão, onde entrou como numa nuvem, obnubilada sem poder eliminar as alfaias já não da sua mente, mas da sua alma. Talvez por isso, foi que tardou em ver a face vermelha de vergonha da mulher do Sr. Antonio, a cara de ira deste, e a expressão de pavor de Alvarito. De súpeto, o Sr. Antonio cravou a sua mirada diretamente nos olhos de Maria e, quase entre dentes, enunciou um seco: María, acompáñame a la cocina. Maria, morta de medo, seguiu as indicações do homem da casa que só logrou conter as ganas de berrar e malhar nela por medo a que a vergonha familiar ainda pudesse ir a mais. Ao cabo duns minutos Maria compreendeu o acontecido. Um dos filhos de Dom Esteban pisara, disque sem querer, o pé do pequeno Álvaro, ao que este respondera com um sonoro "Me cagho no demo!". Maria estava despedida: -Com razão, -pensou ela no fundo-, mira que me advertiram de não falar galego diante dos nenos.
Passaram os anos. Maria trabalhava agora de peixeira no mercado da praça de Lugo e José, o Moucho da Cunqueira, progredira no grémio da construção. Tiveram um filho, Diego, que agora, em 2010, tinha trinta e dous anos. Diego trabalhava de empregado de mesa num dos melhores restaurantes da Crunha. Vivia com a sua moça desde havia uns poucos anos e estavam a pensar em casar. Um dia o chefe de Diego encarregara-lhe atender uma mesa de gente importante, gente importante da Universidade, pensava Diego. Levou-lhes a ementa e marchou para deixar que escolhessem. Passado um tempo prudencial, Diego achegou-se de novo à mesa para tomar nota do menu. Cada uma daquelas elegantes pessoas ia enunciando, passeninho, seguindo uma ordem quase ritual, o prato da sua eleição até que, de sócato, uma delas, com um falar pausado e diáfano, pediu "pescada à grelha"; e Diego não entendeu. Duvidou se perguntar, mas... não foi quem de juntar as forças. Finalmente optou por tomar nota literal daquele exótico pedido e perguntar a algum companheiro. Andavam todos com muito trabalho e Diego não teve mais remédio senão dirigir-se ao seu chefe, Agustín. Achegou-se a ele e disse: "Oístes Agustín, mira que te voy dicir. Que el chorvo, bueno... el... cliente de la mesa ocho va y me pide pescada à grelha y yo... buah, no sé que dicirles en cocina ¿mintiendes?". Agustín lamentou-se momentaneamente de ter contratado aquele moço, não suportava ouvi-lo falar, não suportava o timbre da sua voz, pensava que era uma vergonha ter um empregado que falasse assim num restaurante da sua categoria; esclareceu-lhe a dúvida e citou-no à saída para lhe dar o cheque com que costumava pagar-lhe. Agustín aproveitou a ocasião para recordar-lhe, mais uma vez, que tentasse refinar o seu falar, ainda que sabia que continuaria sem ter êxito nessa pretensão.
Esse dia Diego marchou para a casa com a sensação de ter sido estafado. Revisava compulsivamente o cheque em busca dalgum erro na quantia recebida, mas, uma e outra vez, comprovava que tudo estava em ordem. Sentia-se estafado, profundamente burlado e, sem saber mui bem por que, dirigiu-se à casa de seus pais. Ali estavam os dous, coma sempre. Sua mãe mui contenta pola visita do filho, pois estas eram cada vez mais infrequentes. Seu pai, após saudá-lo, continuou a ler o jornal. Mas Diego estava algo ido, não podia desfazer-se dessa ideia de sentir-se estafado e foi então, abruptamente, que perguntou: "Mamá ¿por qué me educasteis en español?". A mãe não esperava essa pergunta e o pai ergueu desconcertado a vista do jornal, só durante um segundo. Estava lendo uma reportagem a fundo na que expertos sociolinguistas debatiam os novos dados publicados polo IGE. A mãe não sabia o que responder, a pergunta colhera-a desprevenida. José continuava a navegar com a sua vista polo jornal; o debate dos sociolinguistas centrava-se agora na presença do galego na escola. Por fim, Maria, Maria da Breia, a mãe do Diego, disse-lhe ao filho: "Fue mejor para ti". Diego calou, agora sentia-se perplexo para além de estafado. Transcorreram uns poucos segundos, sem dúvida longos para todos os presentes naquela pequena sala. José Ferreira, o Moucho da Cunqueira, estava a cada vez mais inquieto. Sentia-se incómodo por momentos e finalmente optou por sentir-se realmente molesto. Não, não era exatamente molesto como se sentia. Não dava acougado e uma sensação estranha acabou por apoderar-se do seu ser, era como quando aquele distribuidor lhe fornecera maus materiais a preço de ouro. Ciscou o jornal no chão, ergueu-se notavelmente afetado, e tão só foi capaz de dizer: Maria, roubarom-nos.
Arturo de Nieves Gutiérrez de Rubalcava (A Crunha, 1983). Licenciado em Sociologia pola Universidade da Crunha e Bachelor of Science with Honours in Sociology pola Universidade de Abertay Dundee. Actualmente realiza estudos de doutoramento na Universidade da Crunha. Entre os seus interesses investigadores destacam temas como a língua, a identidade colectiva ou o comportamento eleitoral na Galiza contemporânea. »