Foram passando os anos até que, um bom dia, o Diego, filho do Moucho da Cunqueira, foi por fim quem de reunir os quartos suficientes para poder amanhar o casamento com a Susana, sua moça de velho. Gostariam realmente de casar nalguma das antigas e fermosas igrejas da cidade velha crunhesa, mas aquilo significaria realizar um desembolso verdadeiramente demasiado quantioso para a parelha. Assim as cousas, optaram por eleger a igreja paroquial urbana que lhes correspondia por vizinhança como o lugar onde se desenvolvesse a cerimónia sacramental mália que, a olhos do pai dela, esta semelhasse mais bem uma garagem do que um genuíno templo cristão. O caso, fora como for, é que casaram, sendo autenticamente felizes, na primavera de 2012.
Tão só uns meses após o casamento, o Diego e mais a Susana acordaram que queriam trazer ao mundo uma criatura. Mas acontecia que, para isto, deveriam abandonar o pequeno apartamento em que levavam alugados já alguns anos e empreenderem a trabalhosa tarefa de procurar uma nova vivenda; desta volta uma que contasse com duas habitações. Assim, aguardaram um par de anos para se recuperarem do golpe económico que supusera a celebração do casamento e, uma vez transcorrido esse período, conceberem o que seria seu primeiro filho; e assim foi, numa noite estrelada de São João.
Finalmente toparam uma vivenda em aluguer no bairro de Labanhou que, ainda sendo pequecha, cumpria o requerimento do número de habitações para além de não resultar economicamente proibitiva. A posição da nova morada guardava uma simetria quase perfeita com a dos pais do Diego, situada da outra beira da angra do Orzã. Tanto a Maria como o José, os pais do Diego, levavam já anos decididos a não marchar daquele bairro mais que para voltarem à aldeia.
Passavam os meses e a parelha estava a cada dia mais animada com a ideia de ser pais. As cousas iam bastante bem; agora o Diego trabalhava numa cafetaria muito animada do bairro, servindo cafés e algum que outro copo de conhaque... e cervejas, muitas cervejas, quando jogava o Deportivo. A Susana conseguira trabalho num talher de costura, semi-clandestino, isso sim, e passava as noites fazendo prendas para uma grande empresa do têxtil; fazia camisas, calças e o que for que se lhe pusesse por diante a uma velocidade pasmosa. Somando os dous salários, e em função de como foram as gorjetas do Diego e as horas extras da Susana, podia haver meses em que a parelha salva-se alguns centos de euros que guardava com zelo num fundo destinado à sua criancinha. Ainda que todas as alegrias acabariam por esvaecer ao quarto mês de gestação, pois a Susana não podia continuar a dissimular o seu estado diante do encarregado do talher, mália o esforçado encobrimento de todas as suas companheiras sem exceção. Com a Susana na rua as cousas complicavam-se para o casal e aginha tiveram que botar mão aos dinheiros do fundo para a criança.
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Corria o inverno de 2030. Kevin José Ferreira –com esse nome fora baptizado o filho do Diego–, o Kevin por moderno e o José em honra de seu avó, cujos restos mortais repousavam já no campo santo da Capelada, não dava demasiadas alegrias a seus pais. O rapaz contava já com dezassete anos, a piques de fazer os dezoito, e não era bom estudante. Trabalhava por necessidade desde os dezasseis, no talher mecânico dum amigo de seu pai, e abofé que vos era bem espilido, mas os seus professores tinham bem clarinho que não chegaria a nada, e assim lho faziam saber periodicamente. Com os primeiros dinheiros que o Kevin foi tirando do trabalho no talher mercou uma “scooter” que conduzia sem capacete e dominava com mestria, sendo quem de realizar acrobacias incríveis com ela, que a todos punham os pelos crechos. Assim as cousas, a única satisfação que o Kevin obtinha no tempo que passava no liceu tinha lugar durante os dez minutos prévios ao aviso de início de aulas, quando chegava à entrada do edifício cavalgando a sua “scooter” e via à Jessica Moreira sentada num dos bancos situados diante da entrada do edifício. Nesse momento o seu coração acelerava-se, prelúdio fisiológico da imediata aceleração mecânica da sua “scooter”, que acabava invariavelmente situada a poucos metros da Jessica após a realização dalguma acrobacia impossível. Umas vezes derrapava, deixando a marca preta da roda no chão, outras vezes elevava a roda dianteira e percorria dezenas de metros unicamente sobre a traseira... Numa ocasião, mentres era observado pola prática totalidade dos seus companheiros e companheiras de liceu, prolongou a manobra no tempo, deica pousar a roda dianteira da “scooter” diretamente sobre o banco onde sentava a Jessica Moreira, detendo-se a escassos metros dela, ainda que isso não avondou –nunca avondava– para provocar sequer um mínimo gesto de admiração ou surpresa no rosto dela, o que desesperava absolutamente o Kevin.
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Verão de 2041.
O Kevin, que agora contava com vinte e oito anos, levava já sete de relação amorosa com a Jessica. Ela sempre fora uma moça muito aplicada e desde o começo animou constantemente o Kevin a não deixar os estudos, pois confiava na sua capacidade para chegar à Universidade. A duras penas o Kevin rematou a educação secundária e, sempre compaginando os estudos com o trabalho no talher mecânico, foi quem de graduar-se na Universidade para imensa alegria de seus pais, que sempre recordariam o dia da graduação de seu filho como o dia em que com mais orgulho encheram o peito nas suas vidas. O Diego até poupara quartos durante meses para assim poder comprar um traje digno daquela ocasião.
O Kevin, já graduado, redigiu o seu curriculum com muito tento, cuidando cada uma das expressões e assegurando-se da correção gramatical de cada uma das frases, tarefa para a que pedira ajuda a um seu amigo que sabia escrever bem. Depois de reler dezenas de vezes aquele documento e de consultar a sua correção com todas as pessoas conhecidas cujo ponto de vista tinha em boa estima, começou a sua distribuição entre as empresas. Aguardou pacientemente, ainda muito animado por ser quem de se ter graduado, mas não recebeu resposta nenhuma. Foi então que recordou todas aquelas cousas que escutara na Universidade sobre a necessidade da formação contínua ao longo da vida e começou a interessar-se por “masters” e cursos diversos. Contactou com um companheiro de turma que se topava numa situação semelhante à sua e combinarom uma tarde para intercambiar estratégias e ideias na procura de trabalho. O seu companheiro falava-lhe entusiasmado dum “master” que havia em Barcelona. Era genial, não só contava com os melhores profissionais do sector, senão que também oferecia uma listagem de afamados professores a nível internacional. Ademais, para completar o atrativo do curso, oferecia a possibilidade da realização de práticas remuneradas em empresas multinacionais com presença em diferentes países europeus durante nada menos que três anos uma vez finalizado o curso. Kevin estava entusiasmando-se também a medida que ouvia o relato do seu companheiro; estava convencido, tinha que fazer aquele “master”. O melhor de todo, dizia-lhe o seu companheiro, é que poderia passar três anos nalgum país europeu, talvez no Reino Unido, aprendendo inglês, pois Kevin continuava sem dominar essa língua após quase vinte anos de estuda-la no sistema educativo galego, trilingue por imperativo legal. Não era assim para o seu companheiro, que ainda se defendia nesta língua, pois passara uns quantos verãos assistindo a cursos de imersão linguística em Londres, Dublim e Nova Iorque sendo adolescente. Foi então que o Kevin perguntou por quanto saía cursar aquele “master” em Barcelona, ao que o companheiro respondeu com um despreocupado: “Pues creo que sobre doce mil o quince mil euros”. Aquela quantidade caiu sobre o Kevin como uma lousa de doze mil ou quinze mil toneladas. Acabarom as cervejas e marcharom, o companheiro para o seu apartamento e o Kevin para a casa de seus pais.
Passavam as semanas e Kevin continuava sem receber resposta a nenhum dos seus currículos enviados. O inglês a dar-lhe voltas na cabeça: “si supiera inglés”, repetia-se constantemente. Um dia reuniu a vontade necessária para marchar ao Reino Unido; iria a Londres, trabalhar do que fosse. Juntou os quartos necessários, com ajuda de seus pais, e alá foi. Uns dias antes da sua partida, recebeu uma chamada duma empresa, a primeira em todo aquele tempo, para trabalhar com um contrato em práticas a jornada partida. Disse que não, estava decidido e volveria para triunfar.
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Outono de 2046
O Kevin tinha trinta e três anos e já levava algo mais de doze meses na Galiza, após trabalhar durante dous anos e pico num supermercado de Londres, onde coincidira com vários galegos em situação semelhante à sua. Agora começava o seu segundo mês como empregado dum banco espanhol na Galiza, realizando monótono trabalho administrativo e sofrendo uma jornada laboral eterna que nunca respeitava as horas acordadas no seu contrato temporal. O inglês utilizava-o para ver filmes e documentários em versão original. Gostava dos documentários. Uma noite via um sobre a extorsão de mulheres africanas destinadas a exercerem a prostituição na Europa Ocidental. O documentário, fruto dum prestigioso trabalho de investigação jornalística, amostrava uma pequena figura, fetiche vudu, com que as máfias ameaçavam as mulheres, futuras prostitutas. Do fetiche dependia não só a saúde das mulheres, mas também a dos seus filhos e filhas, assim como a sorte das colheitas. De não obedecer os ditados das máfias, os fetiches nunca seriam devolvidos para as mulheres e, deste jeito, passavam uma media de dez anos prostituindo-se na Europa. Todo por conseguir o seu prezado fetiche, capaz de proporcionar-lhes um futuro próspero. O Kevin rompeu a chorar.
Arturo de Nieves Gutiérrez de Rubalcava (A Crunha, 1983). Licenciado em Sociologia pola Universidade da Crunha e Bachelor of Science with Honours in Sociology pola Universidade de Abertay Dundee. Actualmente realiza estudos de doutoramento na Universidade da Crunha. Entre os seus interesses investigadores destacam temas como a língua, a identidade colectiva ou o comportamento eleitoral na Galiza contemporânea. »