Eu, que dalgum modo sempre seguirei a viver na cultura tradicional, porque a cultura não é apenas um vestido exterior que se pode tirar só por ter ficado fora da moda, sigo a valorizar mais tudo o que me chegar através das conversas; conversas com os meus. Foi assim que alguém me falou na entrevista que Carlos Callón tinha sofrido na TVG, conduzida por Carlos Luis Rodríguez. Tinham-me dito que Carlos Callón não se soubera defender das manhas do jornalista, e até me fizeram pensar naquele entrevistador da BBC no programa ‘Hard talk’ que eu tinha visto alguma vez, e senti curiosidade.
Finalmente, na aldeia virtual onde tudo fica ao alcance de um ‘clic’, atendi o vídeo. Uma imagem veio à minha cabeça no primeiro instante, foi a da cobra e o passarinho; imagem que, sem eu a ter visto nunca com os próprios olhos, tenho, polo número de vezes que ma fizeram ‘ver’, bem desenhada em meu interior... O passarinho vai baixando de póla em póla sem decatar-se de que é a cobra que o está atraindo para que caia na sua boca... Agora alguns dirão que isso é uma lenda; tenho ouvido tantas vezes isso nos últimos anos, sobre tantas cousas, que já não me assusto... Eu sei melhor do que isso, porque o meu pai me contava como ele ajudara um dia um desses passarinhos a se libertar da atracção da cobra; talvez as lendas eram apenas formas de transmitir de jeito cifrado os nossos códigos éticos, não sei, e acho que já não quero saber...
Contava também meu pai como a ele uma vez, estando à espera da lebre, uma cobra o tentou atrair, e ele sentia como ia escorregando polo penedo abaixo sem saber o que se passava, até que viu a cobra; ainda bem que tinha a escopeta carregada; era aquela uma cobra enorme, e dela, uma vez morta e aberta, saíra um bom pão de unto que depois foi salvar a vida dum homem que os guardias civiles deixaram por morto no buraco do volfrâmio em Chão de Lamas, na altura da II Guerra Mundial; foi graças às fretas com aquele unto curado ao fumo que o homem suou todo aquele sangue preto e se livrou da morte. E do mesmo jeito que há muitos que dividem o mundo entre bons e maus, ou entre branco e preto, outros aprendemos a ver cobras e passarinhos.
Nestas artes da caça a cobra mesmo parece que se deleitasse comprovando como o passarinho se vai achegando e achegando, sabendo que, se alguém não interromper a cerimónia, a vítima vai cair nas suas fauces; para isso a cobra cuida muito bem o entorno... E é claro, o vídeo não dá para avisar a vítima, e ela fica lá sozinha a ser atraída; enquanto todos nós em casa, mesmo com a distância do tempo e do ecrã, nos sentimos atacados pola cobra. Se a cobra ataca a um dos nossos, um que nesse momento representa a todos nós, todos nós estamos sendo atacados. Foi assim que eu senti a cobra me atacar, e me senti passarinho, e sei que se fosse eu quem estivesse lá, muito provavelmente a cobra me teria feito outro tanto.
O passarinho tem o sangue quente, é um ser com capacidade de transmitir emoções e de cometer erros, e errar é algo muito humano quando estamos submetidos a uma pressão excessiva; excessiva e injusta, especialmente quando o passarinho está na sua árvore, onde tem construído a sua casinha, árvore à que a cobra sobe apenas para o matar, para o botar, porque ela não precisa a árvore para viver. Da cobra, por contra, podíamos dizer apenas que tem anti-emoções, desliza-se matematicamente milímetro a milímetro para fazer aquilo que sabe fazer: caçar, matar; e a todos nós só de pensar nela se nos põe a coiro de galinha, e sentimos o gelo a se querer meter nas nossas veias; ora, há quem nos últimos tempos tem escolhido estes bichos como animais de companhia... Talvez sejam estas pessoas que já perderam a noção do que é a companhia...
Fique claro que não escolhi a figura da cobra para esta cena, por ser este o único bicho nestas terras, que eu saiba, que tem duas línguas, ou duas meias línguas, diria eu; também não foi por ser este um bicho que vive arrastando-se, enquanto o pássaro sabe voar e conhece os segredos dos quatro ventos; não, eu escolhi o que escolhi porque essa foi a imagem que acudiu à minha cabeça quando comecei a atender o vídeo.
Concha Rousia nasceu em 1962 em Covas, uma pequena aldeia no sul da Galiza. É psicoterapeuta na comarca de Compostela. No 2004 ganhou o Prémio de Narrativa do Concelho de Marim. Tem publicado poemas e relatos em diversas revistas galegas como Agália ou A Folha da Fouce. Fez parte da equipa fundadora da revista cultural "A Regueifa". Colabora em diversos jornais galegos. O seu primeiro romance As sete fontes, foi publicado em formato e-book pola editora digital portuguesa ArcosOnline. Recentemente, em 2006, ganhou o Certame Literário Feminista do Condado. »