Nada como as mãos, com seus cinco dedos articulados, para pegar. Às vezes também com ajuda dos braços, como quando se quer pegar nos meninhos... Ternurenta frase onde as haja: “pega-me no meninho”...
Também se pode pegar com o pé, especialmente para pegar na porta, ou na bola antes de a jogar... na porta também se pode pegar com as costas; e por vezes usamos os dentes para pegar, como fazemos por exemplo no cartãozinho da garagem para não demorar em passar quando a barra se levanta, ou para pegar no fio antes de enfiar a agulha... Assim fomos aprendendo desde crianças... “pega de lá, que encartamos a manta” Também apreendemos a “pegar sabão à roupa”, ou a não beber dos copos alheios para que “não se nos pegue qualquer mal”; ou “pegar a volta” e ir por onde se vinha; ou “pegar a correr”, “pegar no sono”, “pegar a cantar” ou mesmo “pegar a chover...” e por vezes se nos pode “pegar a maneira de falar” de outros...
Um dia aparece a televisão, e como um rio desbordado leva tudo por diante... Estás tranquilamente uma tarde na sala da tua casa vendo a TVG e de repente aparece esse anuncio, que para mais é institucional... de desenhos muito cuidados, como de um filme africano. Na cena vê-se uma criança miúda que vai escorregando para finalmente cair numas mãos abertas que a jeito de cuncha o acadam quando vem polo ar e pegam nele para evitar que vá ter o chão a se magoar. Até aí tudo bem...
Mas nesse momento aparece uma frase, possivelmente revisada pola equipa de normalização linguística, falada e escrita que diz: “Mans para coidar pero non para pegar”
-Não entendo este anúncio... –diz uma voz a teu lado no sofá- diz que as mãos não são para pegar e bem se vê como pegam no meninho para que não caia ao chão... por que?
Como explicar-lhe a uma criança que a palavra “pegar” aí está sendo usada à castelhana?
-E que eles no anuncio quando dizem “pegar” querem dizer “bater” “golpear” “maltratar”...
-E porque não o dizem?
Eu fiquei sem saber o que responder... A mim acudiu uma outra frase e um outro tempo, e uma outra pequena a perguntar... “el cocodrilo ataca al hombre” a minha mãe nunca vira um crocodilo e eu não dava imaginado àquele bichicho com as mãos pequenas como tinha a submeter as fraldas da camisa por dentro das calças do tal homem... pois isso era atacar para nós... ora aquela frase vinha numa língua que não era a nossa, e a mestra era quase tão inacessivel como a televisão na que hoje se fala na nossa língua, mas fala-se desde um ponto de vista alheio, fazendo-nos estrangeiros de nós mesmos... Na minha cabeça apareceu depois um pensamento amargurado... “mais uma palavra, com uma cheia de sentidos, que acabarão por apagar, e mais um motivo para nos chamar de lusistas aos que tenhamos memória...”
Concha Rousia nasceu em 1962 em Covas, uma pequena aldeia no sul da Galiza. É psicoterapeuta na comarca de Compostela. No 2004 ganhou o Prémio de Narrativa do Concelho de Marim. Tem publicado poemas e relatos em diversas revistas galegas como Agália ou A Folha da Fouce. Fez parte da equipa fundadora da revista cultural "A Regueifa". Colabora em diversos jornais galegos. O seu primeiro romance As sete fontes, foi publicado em formato e-book pola editora digital portuguesa ArcosOnline. Recentemente, em 2006, ganhou o Certame Literário Feminista do Condado. »