E chegou o dia de entregar o infame papelinho do inquérito. Pousei-o nas pequenas mãos da minha filha, mãos que já aprenderam a ser firmes porque elas sabem do mundo ao que pertencem, uma Terra que pede luita... como dizia o cantar de ‘Fuxam os Ventos’... noutrora, noutrora que era esta mesma hora... e eu sonhara então que a justiça ainda era possível algum dia... E seguia a dizer o cantar... ‘Terra que precisa gente inteira prá libertare...’
À minha mente veio hoje, sem eu a procurar, uma imagem, a dos índios que venderam Manhattan aos Holandeses por 60 florins em 1626, também eles viram não outra saída... O poderoso sabe anunciar sempre bem isso... e é ‘ou à maneira deles’ ‘ou à maneira deles...’
Nós hoje vimo-nos forçados a vender a nossa língua, o nosso inimigo sabe atuar, ele nos observa, ele nos conhece... ele sabe que fizermos o que nós fizermos ele saberia dar as voltas para o usar na nossa contra... Se respondermos aos seus inquéritos nada se passa, porque eles não tem pensado fazer caso se as contas não lhe saem... Se nós nos tivéssemos negado a responder, nada iria adiantar porque eles já convenceram a outra gente que sim lhes responderia, o depredador sabe escolher o momento... e por isso que nós hoje não tivemos outra opção que vender a nossa língua... pergunto quanto seria a conta em Florins? O que vale uma língua? O que vale uma cultura?
Eu hoje senti, e me atrevo a dizer, a dor do etnocídio nas minhas carnes e fiquei paralisada, apenas pude escrever este pequeno texto...
Um corpo sem janelas
Às vezes
como hoje
fico triste
por ter de deixar em herança
a quem mais estimo
a quem mais devo
apenas esta guerra
em que vivo
Quando a mim me foram doadas
as transparentes assas do vento
para percorrer sem ter de me mover
os cantos segredos do universo
a mim me foram entregues
as sábias mãos da água
com infinitas carícias
a compor ribeiras florescidas
e músicas de melras
a tecerem ninhos e destinos
e som para os ouvidos
e os olhos do dia
também me foram oferecidos
que porem
me permitiam ver a noite
tocar o interior da escuridade
que era seda pintada de estrelas
...e agora eu o que deixo?
apenas um vazio
uma ausência
e esta saudade desmedida
em que me embrulho
para ocultar que existo
e que não existo
porque há não saída deste desterro
no interior de um corpo avelhentado
mas não envelhecido...
aonde irei eu agora
levar a minha juventude
aonde irei levar morrer
o meu corpo
cheio de vida
Concha Rousia nasceu em 1962 em Covas, uma pequena aldeia no sul da Galiza. É psicoterapeuta na comarca de Compostela. No 2004 ganhou o Prémio de Narrativa do Concelho de Marim. Tem publicado poemas e relatos em diversas revistas galegas como Agália ou A Folha da Fouce. Fez parte da equipa fundadora da revista cultural "A Regueifa". Colabora em diversos jornais galegos. O seu primeiro romance As sete fontes, foi publicado em formato e-book pola editora digital portuguesa ArcosOnline. Recentemente, em 2006, ganhou o Certame Literário Feminista do Condado. »